6.2.09

Pensamentos entre quatro paredes

Observo o raio que me cerca, três faces e a minha: um débio, um louco, um depressivo e eu. um quarto em verde musgo, janelas sem vãos e uma lâmpada de 25 watts acesa, quatro cadeiras velhas e nada mais. a lâmpada nunca se apaga, não é forte o bastante pra manter tudo visível aos olhos, tudo vívido, nem escura o bastante para permitir que não nos encherguemos, não enchergemos o lodo da cor das quatro paredes apertadas ou o silêncio obscuro de cada um de nós. não temos sono, mesmo estáticos nessas cadeiras duras, nossos pensamentos correm o inferno inteiro a cada minuto do relógio que marca apenas minutos, sessenta riscos e só sabemos das horas, que horas, quantas horas, quantos dias... apenas sabemos dos minutos a cada estalo seco do ponteiro. O depressivo murmura um choro ou dois... o louco ri alto e pede com cortesia que ele pare de choramingar pois se não ele o matará a golpes de cadeira, o débil nos encara com seus olhos grandes e vermelhos e nos pergunta aos sussuros se já não estaremos todos mortos, os três me olham e eu permaneço imóvel. não há sono, apenas palavras à 25 watts. o depressivo começa a murmurar mais alto, seus lamentos quase ganham sílabas, quase que formam frases na cabeça de nós três e cada um, quase que ouve seus própios lamentos na voz doída e sufocada do depressivo, o débil começa a chorar forte, alto e forte... o louco então levanta-se e se põe a caminhar ao redor, a lâmpada começa a oscilar, a piscar mais fraca ainda, o louco caminha mais rápido, sua respiração forte ocupa o espaço entre os murmuros e os gemidos do depressivo, do débil. eu ainda consigo permanecer estático, minhas mãos suam, mas eu ainda consigo permanecer imóvel, eis que o louco começa a correr como quem corre de si, circular e desenfreado, o débil a urrar mais e mais alto, o depressivo se encolhe em sua cadeira como quem se esconde do todo, como se pudesse se unir a cadeira, virar uma estensão de madeira e geometria da cadeira escura. eu me levanto... o louco pára de correr, puxa uma navalha do bolso e abre a própia garganta, o débil emudece, o depressivo estica o braço em direção a uma porta ao fundo do quarto, eu a abro, o débil dá uma gargalhada alta, eu a abro e pulo, caio como se pulasse dum abismo sem fundo, uma luz infinitamente forte me toma os olhos, acordo sentado na frente de um espelho e me sinto, como quem acabou de pular de dentro da própia orelha.



“Nenhum de nós pode se salvar sozinho; ou nos perdemos de uma vez juntos, ou nos salvamos juntos.” - Joseph Garcin | personagem de Entre quatro paredes, de Sartre |



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5.2.09

Bernardo soares

Texto de um dos seres de Fernando Pessoa, dos menos conhecidos se comparado a Campos, Reis e Caeiro, mas não menos importante e maior. dito como o própio Pessoa "um semi - heterônimo", talvez maior que os outros por ser semi - heterônimo e por dedução, estar mais próximo do real de Pessoa.


"Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento, aquelas frases simples de Caeiro, na referência natural do que resulta do pequeno tamanho de sua aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena, pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e por isso a aldeia é maior que a cidade...


"Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura."


Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me de toda a metafísica que espontaneamente acrescento à vida. Depois de as ler, chego à minha janela sobre a rua estreita, olho o grande céu e os muitos astros, e sou livre com um esplendor alado cuja vibração me estremece no corpo todo.

"Sou do tamanho do que vejo!" Cada vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir consteladamente o universo. "Sou do tamanho do que vejo!" Que grande posse mental vai desde o poço das emoções profundas até às altas estrelas que se reflectem nele e, assim, em certo modo, ali estão.

E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objectiva dos céus todos com uma segurança que me dá vontade de morrer cantando. "Sou do tamanho do que vejo!" E o vago luar, inteiramente meu, começa a estragar de vago o azul meio-negro do horizonte.

Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvageria ignorada, de dizer palavras aos mistérios altos, de afirmar uma nova personalidade larga aos grandes espaços da matéria vazia.

Mas recolho-me e abrando-me. "Sou do tamanho do que vejo!" E a frase fica sendo-me a alma inteira, encosto a ela todas as emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como sobre a cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar duro que começa largo com o anoitecer."



FRAGMENTO QUADRAGÉSIMO SEXTO
Livro do Desassossego

Texto integral



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Tempo

Sentado e com as indulgências das horas, sentado e totalmente senhor do paralelismo a tudo o que for dispor meus músculos ao movimento, numa espécie de universo paralelo das cousas que me fazem eu, numa espécie de paralelismo universal de mim pelas cousas, das cousas por mim, num que de cousas e eu, sem distingüir cousas e eu. a janela aberta, a outra fechada, a porta vermelho - verniz, meu rosto de pensamentos abertos, meu rosto de pensamentos fechados, meu rosto pálido - verniz. as horas no estalo agudo do relógio de parede, as horas deitadas na parede e seus estalos agudos, as horas tão tácteis como se os segundos fossem pedaços de metal caindo dos céus em minha cabeça, o paralelismo universal da realidade das horas, da realidade incorruptível das horas. quem prendeu as horas no redondo e alvo objeto na parede? as horas transpassam o objeto na parede e perfuram todo o meu espírito, as cousas não prendem as horas, as cousas no máximo se prendem as horas, pois a hora há sem cousas, mas não há cousas sem horas. sentei - me aqui na cadeira mais certa dos meus pensamentos e sonhei, cinco minutos, uma hora, uma vida... não sei, só as horas do relógio redondo sabem, cochilei e acordei ofegante como em espamos de pensamentos, como se tivesse todos os pensamentos de uma vida em um instante de tempo, espalhei as órbitas doentes dos meus olhos contra o relógio, num afronte mudo de quem quer ofender, questionar de forma ofensiva o que me dera pra sonhar, o motivo pelo qual me deu uma vida toda em gotas estaladas de instantes, o relógio em contra partida nada me respondeu, apenas tictaqueou dentro de seu limitrofe ser que inventa imitar o tempo. ao seu lado há um Quadro, barcos rasgando um azul sujo de branco em direção. direção a que? aonde? apenas em direção, e se cem anos se passarem e se esta parede permanecer de pé, e este Quadro ali também permanecer, ainda estaram as embarcações indo em direção. daqui a cem anos minha matéria será uma fina camada de pó sob alguns punhados pesados de terra, e o tempo continuará sendo medido de forma simplória nestes relógios redondos que vivem nas paredes, e os barcos continuaram indo, apenas indo, no mais sólido uso do verbo ir. e eu já terei sido há tempos o que decidi e abdiquei de mim. A casa branca nau preta.


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2.2.09

Espurgo

O ar grosso da manhã espurgada,
do urrar mais bestial do meu tossir.
despertar, e ao chão tornar a vir,
num asco de aurora regurgitada.

Tabaco odoriza na boca minha,
um cheiro forte e sujo de tristeza,
e na saliva eu guardo a riqueza,
que corrói a alma do homem, que a definha.

Sol, esta brasa douda e amarela,
vil, que consome a noite feito fera,
esfera em colápso e flamejante.

Vil, o rarefeito do meu instante
descansa, sob a luz, sentado a espera,
que o sol se esconda numa frágil vela.


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1.2.09

Margem

A margem mais certa do rio, a terceira margem de Guimarães que seja, a margem mais extrema do rio: lhe atiro uma pedra, e nada é - me respondido, além das ondas circulares que a dor do rio cria, que a pedra ao entrar no rio cria, que a pedra, que o rio, que... . A margem mais azul do rio, o incolor mais azul do rio, o céu disposto no rio, que a pedra faz tremer em ondas tão redondas e terrenas, que o rio acaba se tornando um céu que podemos fazer ferir; é, O rio é o céu que se permite ferir. A margem mais humana do rio, a margem que se permite a ofensa dos meus passos, dos meus pés, a margem que me permite um gole d'água e ver o sol morrer distante e laranja, morrer na margem extrema a minha, na margem onde só os deuses e os animais puros podem caminhar. Os céus estão desérticos e a margem mais arenosa dos rios dos meus pensamentos, sou eu, pelos cantos escuros dos pensamentos, incógnito, sou eu a terceira margem do rio de mim.



Feist - The water