5.4.12

Sépia

Cá está bem, dou por justo, no canto extremo do banco de madeira da praça de ninguém, sento e aguardo com a paciência trêmula do cigarro pendurado pelos dedos, anoiteço as costas no conforto severo do velho banco da praça dos ninguém, e espero.
Que espero? que espera este banco de madeira já tão gasta? a árvore curva ou o homem velho e curvo no outro banco defronte a mim, que esperam?
Um trago, outro... e toda síntese se desmancha no ar como a fumaça que se esvai, par ao barulho distante das coisas, e como em uma fotografia, toda a realidade se emoldura em minha volta. que esperam? não esperam nada, pois esperar é, antes de outra coisa, presumir, anteceder... e não somos deuses inventados rabiscando destinos, eu e o velho banco, a árvore e o velho homem, a praça dos ninguém, a realidade orgânica das coisas, o mundo lá fora que passeia pelos outros olhos que não os meus, somos todos a fotografia suja do agora, e amanhã talvez outra, e depois outra... mas que sempre o tempo, com suas mãos inquietas, rasga cada foto, uma a uma, a cada segundo passado.
Mas dou por justo, no canto extremo deste banco, a consciência da fluidez das coisas por elas mesmas se faz justa, e o peso da urgência fica do lado de fora, na calçada e nas pernas apressadas dos ninguém, mas o banco e o cigarro me confortam, daqui eu vejo o tempo rasgar as fotografias dos ninguém, daqui toda a pressa de existir se torna impressões em sépia, rasgadas, ao vento.

4.4.12

Versos à ferrugem

A ferrugem...


Sentado no banco frio e irregular do coletivo,
andando frouxo por entre as ruas maltrapilhas do centro velho,
desviando das centenas de rostos anônimos, rostos abandonados sobre os pescoços do alheio.

Meu olhar frio e irregular, meu olhar sempre frouxo e maltraiplho com a encenação diária que me cerca, meu olhar sempre alheio, sempre a frente do meu pensamento, pois a imagem do real sempre suplanta qualquer pensamento criado, as suposições vivem dos olhos para dentro, sempre de castigo num canto qualquer da cabeça, guardadas nos porões das nossas incertezas supostamente certas, pois só quem é livre é a realidade, a realidade corre pelas ruas com os sapatos confortáveis do tempo, já eu... eu ando descalço sobre o asfalto grosso das incertezas do porvir.


Os vizinhos dos meus olhos continuam perambulando pelos cantos da minha boca: moradores de rua, pedintes, executivos, prostitutas, malabaristas de semáforo, pessoas se enclausurando às dúzias em coletivos e o trânsito que as condena, as ruas e as calçadas sujas, todos ainda coexistem comigo ...

Diz o fim do verso de Álvaro de Campos:
"Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao votante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim..."

A ferrugem dos olhos vem de dentro, é antes de tudo o cansaço da própia imaginação.
E os olhos como janelas, o cansaço da imaginação como vidros trincados...
Fiz-me então parte do todo, e é tudo um trincar constante, as ruas e os céus em cinza, todo o concreto e todo abstrato, tudo uma engrenagem maior de vidros sujos e trincados.

A ferrugem...
à ferrugem.