6.9.12

Ao meio

Dor de cabeça, e toda metafísica construida entre minha nuca e meus olhos, perdida na enchaqueca que contrai meus pensamentos. dor de cabeça, e todos os pássaros cantando dos meus olhos para fora, toda a ardência da vida lá fora não são par nem verso dos meus pensamentos inflamados, da minha cabeça dolorida e alheia, me imponho meia hora pr'um verso, nada. uma hora, nada. minha cabeça como um enorme salão trêmulo de vozes ilegíveis, ecoando na inadimplência severa de mim para comigo mesmo.
me vejo na encruzilhada desta enorme sala, num banco de madeira com meu cigarro pela metade, calado, ruminando todas as frases escritas pela metade, todos os caminhos feitos em meia volta, todos os sonetos que findaram na segunda quadra, sou o poeta pela metade, o cigarro pela metade, a dor de cabeça pela metade.
mas ainda há a outra metade da cabeça a doer, a metade das frases, os tercetos dos sonetos e o meio cigarro, uma hora e meia ou duas para se escrever metade de algo, que diferença faz? o mundo lá fora está em paz, e eu ainda tenho metade do todo por terminar...

Retalho



O céu azul da manhã ou já branco das chuvas no fim da tarde, é tão belo quanto, a qualquer hora do dia, o que muda no espírito das horas são os olhos e a alma destes olhos para com a cor dos céus, hora o branco chuvoso é mais belo, hora o azul matinal o é. O café... amargo ou doce, tem seu tempo do paladar, mesmo o amargo de ferir a língua, com um cigarro para turvar os olhos, tem sua beleza, talvez pelo turvor a ludibriar os olhos, talvez por ser belo a parte o gosto dos olhos ou do pensamento; belo em si.
Pois os olhos são, senão, duas pequenas rachaduras do espírito, e o espírito é toda uma constelação de rachaduras diminutas, que somadas em suas ínfimas partes, formam o que dizemos ser, ou menos que isso. sim, formam muito menos que isso, provavelmente mais uma parte alheia e bela em si, como um móvel fixado no tempo que lhe cabe existir.


Um fragmento ao acaso, um retalho como deve ser, recortado como o queria que fosse Bernardo Soares, que seja:


"Ah, compreendo! O patrão Vasques é a Vida. A Vida, monótona e necessária, mandante e desconhecida. Este homem banal representa a banalidade da Vida. Ele é tudo para mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim por fora.



E, se o escritório da Rua dos Douradores representa para mim a vida, este meu segundo andar, onde moro, na mesma Rua dos Douradores, representa para mim a Arte. Sim, a Arte, que mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar diferente, a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só em lugar diferente. Sim, esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução."



Livro do Desassossego - Fragmento 9