6.9.12

Retalho



O céu azul da manhã ou já branco das chuvas no fim da tarde, é tão belo quanto, a qualquer hora do dia, o que muda no espírito das horas são os olhos e a alma destes olhos para com a cor dos céus, hora o branco chuvoso é mais belo, hora o azul matinal o é. O café... amargo ou doce, tem seu tempo do paladar, mesmo o amargo de ferir a língua, com um cigarro para turvar os olhos, tem sua beleza, talvez pelo turvor a ludibriar os olhos, talvez por ser belo a parte o gosto dos olhos ou do pensamento; belo em si.
Pois os olhos são, senão, duas pequenas rachaduras do espírito, e o espírito é toda uma constelação de rachaduras diminutas, que somadas em suas ínfimas partes, formam o que dizemos ser, ou menos que isso. sim, formam muito menos que isso, provavelmente mais uma parte alheia e bela em si, como um móvel fixado no tempo que lhe cabe existir.


Um fragmento ao acaso, um retalho como deve ser, recortado como o queria que fosse Bernardo Soares, que seja:


"Ah, compreendo! O patrão Vasques é a Vida. A Vida, monótona e necessária, mandante e desconhecida. Este homem banal representa a banalidade da Vida. Ele é tudo para mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim por fora.



E, se o escritório da Rua dos Douradores representa para mim a vida, este meu segundo andar, onde moro, na mesma Rua dos Douradores, representa para mim a Arte. Sim, a Arte, que mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar diferente, a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só em lugar diferente. Sim, esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução."



Livro do Desassossego - Fragmento 9



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