24.6.09

Três dedos de fumo.

Mascava três dedos de fumo, debruçado à vertical no poste na esquina, o vento maltrapilho socava seu rosto como um boxeador impetuoso, seu rosto de pedregulhos mal encaixados. observava o caos aparente das coisas, o cão sarnento a roer o resto do frango no lixo, a mulher da cara gorda a roer os restos do marido nos ouvidos, o dono da mercearia vendo as horas pelas costas, ouvindo o assovio do vento e o tictaquear do relógio, uma hora de cada vez, um dia de cada vez... e assim a vida morre grão a grão.

Mascava três dedos de fumo, um murmurar salobro contra o assovio do vento, os olhos trincados como bolas de vidro, areia nos olhos como pó de melancolia. não fala, não chora, morde o seu fumo e expõe as marcas de sua face disforme, como um troféu contra o vento, um troféu amassado e opaco, um troféu de suas derrotas contra o tempo.

Mascava três dedos de fumo, o casal pára a seu lado no ponto do coletivo, a mulher da cara gorda é uma metralhadora de verbos despresíveis contra os ouvidos meio mortos do marido, eis que o marido lhe olha por um instante, então ele pára com seu mascar, olha de volta o homem dos ouvidos doentes, lhe dá um sorríso débil, desses que guarda no canto amargo da boca, e por um instante o marido dos ouvidos doentes percebe que já está morto há alguns anos...

O coletivo vem, o casal parte...
o cão se aproxima com a costela do frango entre os dentes, solta na frente do homem e se senta como quem espera algo. o homem cospe seus três dedos de fumo no cão e some na viela que mora atras do poste. o cão sarnento lambe o fumo amargo que escorre em seu focinho, e chora baixo como quem descobre que já morreu.

ao fim da tarde o guarda da rua passa e vê que a mercearia estranhamente continua aberta, todo o comércio já estava adormecido. ele adentra pela porta e vê, sentado com o rosto agora a favor do relógio, o dono da mercearia, com o coração parado e o relógio da parede a tictaquear a todo vapor.

E na viela já escura, contra a luz fosca do poste, a silueta do banco caído e as pernas penduradas sobre o ar fazem sombra no meio fio. o homem que outrora mascava os três dedos de fumo, balança como um pêndulo com o pescoço amarrado a uma corda, com seu último sorríso débil estampado no seu rosto de pedregulhos mal encaixados.



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