28.1.09

Liberdade

Preciso cortar os cabelos, por vezes não escuto o mundo direito, fica um ruido ralo, um chiado constante... deve ser os cabelos grandes, a cobrir minhas orelhas. Preciso cortar os cabelos, cortar algo em mim, alguma parte que não doa, mas que eu veja ir embora de mim, se soltar de mim como num ciclo, algo nascido, vivido e morto... algo que cumpriu seu papel orgânico e deu lugar a outra cousa e que dará a outra por sua vez. Preciso cortar os cabelos, acordar de madrugada e ver meu rosto limpo, sem as voltas escuras a cobrir este e aquele canto da minha cara, acordar e sorrir por inteiro, acordar e chorar por inteiro, e ver as dobras do meu sorríso inteiras na minha cara, ver as lágrimas descendo até o prescoço, e não morrendo nos fios mornos dos meus cabelos. preciso cortar meus cabelos, quando venta forte eles escondem meu rosto, e isso por vezes é bom, me dá uma paz necessária pra andar nos tortos desse mundo, mas me acostuma mal com a covardia de fingir não ver, de me abster como todo mundo faz. preciso cortar meus cabelos, aceitar as entradas na minha testa e os anos cáusticos que me convidam aos trinta, o bolor ao fim da estrada pelas costas, dos anos sem barba e sem luta aguda contra o mundo, os anos são ferozes depois de certo tempo, cada dia mais duro e perto da morte, mas pensar nisso deixa as pessoas meio doidas, meio desaprumadas da cabeça, e o que foje dos eixos hoje não é minha cabeça, apenas meus cabelos. preciso cortar meus cabelos, se estão soltos são difíceis de amarrar quando se tem pressa, e é sempre bom ter o controle sobre as coisas, pois vai que eles fiquem soltos sempre e que eu me acostume com eles soltos sempre ? não é justo se acostumar com a liberdade, mesmo que seja a dos cabelos, o mundo sempre póda de forma cruel as grandes liberdades de um homem, que dizer das pequenas. preciso cortar meus cabelos, afinal eles já estão mortos, são células mortas, compridas e mortas... muitos homens devem ter almas compridas e mortas, como uma grande árvore oca e secular, e quando eu paro e espero os carros passarem, o vento espalha meus cabelos na minha cara, e é tudo um tão silêncio e introspecção, que pelos longos segundos de semáforo em vermelho, eu chego a acreditar que o mundo é feito apenas de homens de almas compridas e mortas. preciso cortar meus cabelos sim...



Cat power - Back of your head

Um comentário:

Carolina P. disse...

Sabe, eu gostei MUITO do seu texto. E é a primeira vez que venho aqui então não me sinto tão 'íntima' - se é que você me entende - para falar tudo que lembrei ou pensei ao lê-lo. Te garanto que muitas idéias perambularam pelo meu microcérebro mas nenhuma me parece conveniente para ser dita na primeira vez que leio seu texto. Mas mesmo assim, quero que saiba que eu realmente gostei.